Retrato de Auguste Gabriel Godefroy (1741), Jean-Baptiste-Siméon Chardin

Por Sidney Falcão

Poucas vezes na história da arte um gesto tão simples — o ato de observar um pião girando — foi elevado com tamanha solenidade silenciosa. Retrato de Auguste Gabriel Godefroy, pintado por Jean-Baptiste-Siméon Chardin (1699-1779) em 1741, carrega, sob sua superfície discreta, uma miríade de tensões sutis. É uma pintura que se move pouco, mas fala muito. Seu centro não está no que acontece, mas no que se detém. E é nesse hiato entre o movimento e o pensamento que reside o verdadeiro milagre de sua imagem. 

A obra, hoje parte do acervo do MASP, em São Paulo, graças à iniciativa visionária de Assis Chateaubriand (1892-1968), foi concebida no auge da maturidade artística de Chardin — um pintor que, à sua maneira, desafiou o espírito de seu tempo. Em meio a uma Paris ainda tomada pelo esplendor ornamental do rococó, Chardin propunha um olhar voltado para dentro: interiores contidos, infâncias absortas, objetos do dia a dia elevados à condição de símbolos. O que para muitos era invisível — uma maçã, uma xícara, uma criança em silêncio —, para ele era material de poesia. 

A cena representada é tão íntima que parece sussurrar ao espectador. Um menino — Auguste Gabriel Godefroy, filho de um alto funcionário da monarquia — inclina-se sobre uma escrivaninha. Seus olhos, tão fixos quanto os nossos, acompanham o giro de um pião. Ao redor, repousam livros fechados, uma pena, um tinteiro, uma folha de papel ainda em branco. É como se o tempo tivesse parado. Ou, mais precisamente, como se estivesse suspenso, girando em torno daquele brinquedo modesto que, com sua rotação efêmera, invoca o mistério da existência. 

Aqui, Chardin não pinta apenas o retrato de uma criança. Ele compõe uma meditação sobre o tempo e a infância — dois elementos igualmente escorregadios. A luz que entra pela esquerda, difusa e sem pressa, acaricia o rosto do menino e a superfície da mesa. Não há dramaticidade. Há, sim, uma profunda contenção. Os verdes das paredes, opacos como a memória, envolvem a cena com uma espécie de véu sensorial. E nessa atmosfera rarefeita, cada detalhe ganha peso. 

A roupa do garoto — casaca verde, colete cinza, camisa rendada e peruca branca — insinua a formalidade da elite francesa do século XVIII. Mas seu gesto, curvado, curioso, infantil, desafia essa moldura social. O pião, elemento de fuga e devaneio, torna-se a pequena transgressão simbólica dentro de um universo de disciplina. Os objetos ao redor — livros, tinta, papel — representam o que se espera dele: estudo, progresso, razão. Mas o pião gira, livre, lembrando que a infância também é feita de distrações, de sonhos, de pausas. 

É essa tensão — entre o dever e o desejo, entre o presente e o porvir — que pulsa no centro da tela. O brinquedo não é apenas um adereço. Ele é o ponto de fuga do quadro. Nele, a pintura se desdobra como metáfora: o pião gira como gira a infância, como gira o tempo, como gira o pensamento que não se deixa aprisionar. Sua leveza se contrapõe à rigidez do mobiliário e da indumentária. Sua instabilidade torna-se, paradoxalmente, o eixo de equilíbrio da imagem. 

Nesse sentido, Retrato de Auguste Gabriel Godefroy é também um comentário visual sobre o projeto iluminista de formação da criança. No século XVIII, o valor atribuído à educação era tanto moral quanto simbólico. Retratar uma criança estudiosa — ou mesmo pensativa — era afirmar o capital social da família. Mas Chardin não idealiza. Ele observa. E é justamente essa recusa à idealização que torna sua obra tão moderna. 

Em lugar de construir um retrato heroico da infância, ele a trata como ela é: um campo de forças entre o que se quer e o que se espera, entre a leveza da distração e o peso da responsabilidade. A folha em branco ao lado do menino é um eco visual disso: um futuro ainda por ser escrito, mas já vigiado pelos instrumentos do saber. 

Num tempo como o nosso — marcado por aceleração, dispersão e cansaço —, a imagem dessa criança recolhida, absorta em algo tão modesto, ressoa de maneira surpreendentemente contemporânea. Durante os dias longos do isolamento social, em que tantas crianças foram forçadas a redescobrir seus quartos e suas rotinas, não poucos se viram exatamente como Auguste: imersos em objetos simples, em rituais silenciosos, buscando sentido no que gira e passa. 

O fato de essa pintura ter sido adquirida para o MASP logo em seus primeiros anos não é detalhe menor. Ao trazê-la ao Brasil, Chateaubriand e Pietro Maria Bardi (1900-1999) consolidavam não apenas um acervo, mas uma ideia de arte como espelho da humanidade. Em meio à tradição francesa, ao lado de mestres como Nicolas Poussin (1594-1665) ou Antoine Watteau (1684-1721), Chardin se impõe como um cronista da alma. E seu retrato do jovem Godefroy continua a dialogar com todos que se permitem parar diante dele e ouvir o que o silêncio tem a dizer. 

Se a arte de Chardin nos ensina algo, é que há grandeza na contenção. Que o sublime pode estar num canto da sala, num gesto distraído, no instante em que o mundo cessa seu alarde e nos permite observar. Como um pião que gira em silêncio, sua pintura nos hipnotiza não por aquilo que mostra, mas pelo que nos faz sentir. E, no fundo, é disso que se trata a arte: não apenas de ver, mas de aprender a olhar.

 

Ficha técnica

Título: Retrato de Auguste Gabriel Godefroy

Ano: 1741

Artista: Jean-Baptiste-Siméon Chardin

Técnica: óleo sobre tela

Tamanho: 64,5 cm x 76,5 cm

Localização: Museu de Arte de São Paulo (MASP), São Paulo, Brasil

 

Referências:

masp.org.br

wikipedia.org


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