“A Redenção de Cam” (1895), Modesto Brocos



Por Sidney Falcão 

No final do século XIX, o Brasil enfrentava o desafio de reconstruir sua identidade nacional. Apesar da abolição da escravatura em 1888, as marcas desse passado desumano ainda eram profundas. As elites propagavam o branqueamento como solução para integrar o país à modernidade. Essa ideologia, defendida por pensadores como Nina Rodrigues (1862-1906) e Oliveira Viana (1883-1951), via a miscigenação como uma escada para o progresso, na qual cada geração ascendia ao clarear os traços da ancestralidade negra. 

Nesse contexto, a pintura A Redenção de Cam, de Modesto Brocos (1852-1936), emergiu como um retrato visual que reflete as esperanças e as contradições de um país que buscava redefinir sua identidade racial. A obra revela não apenas o desejo de avanço, mas também as tensões geradas por uma ideologia que idealizava a miscigenação e o branqueamento como soluções para o progresso nacional. 

Modesto Brocos, pintor espanhol radicado no Brasil, estava profundamente influenciado pelas ideias de seu tempo. Vivendo em uma sociedade que tentava apagar as marcas do passado escravista, ele utilizou A Redenção de Cam para simbolizar uma utopia racial idealizada. A pintura retrata uma família negra que, através de gerações, transforma-se no que muitos consideravam o “ideal brasileiro”: uma nação mestiça em direção à brancura. Essa visão estava alinhada às teorias pseudocientíficas da época, que exaltavam a eugenia e a miscigenação como instrumentos de progresso. 

Na pintura, Brocos constrói uma narrativa visual rica em simbolismos. O destaque central é a avó negra, que, com as mãos erguidas e o olhar voltado para o céu, parece agradecer por uma redenção que transcende sua própria existência. Ao seu lado, a mãe mulata segura o bebê de pele clara, um símbolo de um futuro idealizado. Atrás deles, um homem branco — presumivelmente o pai da criança — observa a cena, destacando sua posição de privilégio. 

A paleta de cores terrosas e a iluminação dramática reforçam a narrativa, enquanto o naturalismo detalhista enfatiza as expressões e as feições das personagens. No entanto, o realismo da obra é impregnado por uma agenda ideológica que perpetua as narrativas raciais de sua época. A cena harmoniosa mascara as tensões sociais e históricas que ela representa, destacando as contradições entre a exaltação da miscigenação e a violência simbólica implícita nesse discurso. 

Modesto Brocos em autorretrato de 1882, acervo do Museu de Pontevedra, Espanha.

Embora A Redenção de Cam aparente celebrar a miscigenação, ela também evidencia a violência simbólica do branqueamento. A narrativa não apresenta a miscigenação como encontro de culturas, mas como um apagamento das origens negras. Essa tensão é ampliada pelo naturalismo quase fotográfico de Brocos, que confere humanidade às figuras ao mesmo tempo em que cristaliza o ideal racial no imaginário popular. 

Críticos como a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz destacam a ambiguidade da obra, que pode ser lida tanto como um manifesto da ideologia dominante quanto como uma documentação das contradições de uma sociedade que buscava justificar a desigualdade. Historiadores como George Reid Andrews vão além, argumentando que obras como esta expõem a fragilidade de um sistema que necessitava da arte para legitimar suas falácias. 

Quando foi exposta pela primeira vez no final do século XIX, a pintura foi aclamada e premiada, refletindo os anseios da elite brasileira da época. Por décadas, ela foi celebrada como um marco da arte acadêmica e como um retrato das aspirações do Brasil. No entanto, estudos críticos no século XX revelaram suas contradições, expondo como a narrativa de progresso racial encobria desigualdades e preconceitos estruturais. 

Hoje, A Redenção de Cam é vista tanto como um documento histórico quanto como uma peça de propaganda ideológica. Para muitos, a obra sintetiza os dilemas do Brasil pós-abolição, servindo como um lembrete do papel da arte na perpetuação de desigualdades. Sua relevância contemporânea reside em sua capacidade de provocar reflexões sobre identidade, história e as narrativas que moldaram nossa sociedade. 

A Redenção de Cam transcende a intenção original de Brocos. Embora concebida como celebração da ideologia racial dominante, a pintura também expõe as tensões de uma sociedade que não enfrentou suas feridas históricas. Ela permanece como um espelho das contradições do Brasil e como um convite para questionarmos as ideias que continuam a moldar nossa visão de progresso e identidade.

 

Ficha técnica 

Título: A Redenção de Cam

Artista: Modesto Brocos

Ano: 1895

Técnica: óleo sobre tela

Dimensões: 199 cm x 166 cm

Localização: Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, Brasil.

 

Referências:

enciclopedia.itaucultural.org.br

veja.abril.com

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