"As Meninas" (1656), Diego Velázquez


Por Sidney Falcão 

Num espaço especial do Museu do Prado, em Madri, uma obra singular desafia os limites entre arte e realidade: As Meninas, de Diego Velásquez (1599-1660). Datada de 1656, esta obra-prima da pintura barroca não se limita a retratar a corte espanhola, mas é um enigma meticulosamente tecido. Entre suas pinceladas, desvelam-se não apenas figuras aristocráticas, mas também reflexões sobre o próprio ato de observar e ser observado. Velásquez, com sua maestria técnica, convida-nos a mergulhar em um mundo onde as linhas entre o espectador e o quadro se confundem, onde cada detalhe é uma pista em um jogo de perspectivas e significados ocultos. 

No momento em que a monumental tela As Meninas foi executada, a Espanha estava passando por um período de declínio político e econômico. Filipe IV (1621-1665), apesar de ser um amante e patrono das artes, enfrentava desafios internos e externos que abalavam a estabilidade do império espanhol. Velázquez, que havia chegado à corte em 1623, já era um artista consagrado e respeitado. Ele havia viajado pela Itália, onde estudou as obras dos mestres renascentistas e barrocos, o que influenciou profundamente seu estilo e técnica. 

Em 1656, Velázquez estava no auge de sua carreira. Ele não era apenas um pintor, mas também um curador e decorador de confiança do rei, além de ocupar uma posição de grande influência na corte. Apesar de seu prestígio, Velázquez aspirava a uma honra maior: a nomeação como cavaleiro da Ordem de Santiago, um desejo que seria finalmente realizado poucos meses antes de sua morte, em 1660. 

Detalhe do pintor Velázquez que retratou a si mesmo na tela As Meninas.

A ideia de pintar As Meninas surgiu do desejo de Velázquez de retratar a vida na corte espanhola de uma forma inovadora e profundamente realista. A pintura foi provavelmente encomendada por Filipe IV, que tinha grande apreço pelo trabalho de Velázquez e frequentemente observava o pintor em ação. A obra não só tinha a intenção de ser um retrato da Infanta Margarita (1651-1673), mas também de destacar o próprio Velázquez em seu papel na corte e sua ambição de elevação social. 

Velázquez utilizou As Meninas para reivindicar a nobreza de sua profissão e para fazer uma declaração sobre o status dos artistas. Na sociedade espanhola do século XVII, os artistas eram frequentemente vistos como meros artesãos. Velázquez, por meio dessa obra, se posiciona como um intelectual e criador de prestígio, digno de um lugar de honra na corte. 

O cenário de As Meninas é uma grande sala no Palácio Alcázar de Madrid, usada por Velázquez como estúdio. A pintura apresenta um momento aparentemente casual da vida na corte. No centro, a Infanta Margarita, com cerca de cinco anos, está ladeada por suas damas de honra, Maria Agustina Sarmiento (1637-1709) e Isabel de Velasco (1638-1659). Velázquez se retrata à esquerda, pincel na mão, trabalhando em uma enorme tela, da qual se vê apenas o verso. 

Ao centro, a infanta Margarita, entre as damas de honra. O espelho na parede reflete
a imagem do rei Felipe IV e da rainha Mariana da Áustria.
Na porta, está o camareiro José Nieto. 

Ao fundo, um espelho reflete as figuras do rei Filipe IV e da rainha Mariana da Áustria (1634-1696), adicionando profundidade e complexidade à cena. A inclusão de personagens como os anões Mari Bárbola e Nicolasito Pertusato (1635-1710), que interage com um mastim, bem como o camareiro José Nieto na porta, acrescenta um nível de realismo e dinamismo à composição. 

Velázquez utiliza magistralmente a luz e a sombra para criar uma sensação de realidade palpável. A perspectiva científica e a perspectiva aérea são empregadas para modelar o espaço, e a multiplicação das fontes de luz contribui para a verossimilhança da cena. Detalhes como os enfeites refinados das personagens e a complexidade das expressões e posturas demonstram a habilidade técnica e a atenção ao detalhe do artista. 

A interpretação dos personagens em As Meninas revela muito sobre a vida na corte e as intenções de Velázquez. A Infanta Margarita é o foco central, simbolizando sua importância na corte e o afeto de seu pai, Filipe IV, que a chamava de "minha alegria". Velázquez se retrata com a cruz de cavaleiro da Ordem de Santiago, um detalhe adicionado posteriormente, simbolizando sua elevação social e seu desejo de reconhecimento. Na parede ao fundo, um espelho reflete os reis, adicionando uma camada de complexidade, sugerindo uma interação invisível e questionando as leis da representação e o papel do espectador. 

A inovação técnica de Velázquez é evidente no uso avançado da perspectiva para criar um espaço tridimensional palpável. Ele combina realismo com ilusionismo, transcendendo a mera semelhança e buscando a representação da vida. A pintura também inclui referências a temas mitológicos nas obras penduradas no fundo, sugerindo uma reflexão sobre a humildade e as ambições artísticas. 

A acompanhante da princesa Margarita, Mari Bárbola.

Inicialmente pouco conhecida, a tela As Meninas ganhou fama após ser exposta ao público no Museu do Prado em 1819. Desde então, a pintura tem sido admirada por artistas e críticos de arte, incluindo Pablo Picasso (1881-1973), que criou uma série de 58 pinturas inspiradas nela. A obra influenciou significativamente a arte posterior e continua a ser objeto de inúmeras análises e interpretações. 

Entre os críticos e historiadores, a pintura é louvada por sua composição complexa, a profundidade psicológica dos personagens e a habilidade técnica de Velázquez. A biografia de Antonio Palomino (1655-1726), escrita em 1724, é uma fonte valiosa de informações sobre As Meninas, oferecendo um relato detalhado e identificação das figuras retratadas. 

A tela As Meninas é uma obra complexa que combina maestria técnica, profundidade simbólica e um retrato vivo da corte espanhola. Considerada uma das obras-primas da pintura ocidental, representa o auge da carreira de Velázquez. Seu impacto duradouro e relevância histórica continuam a inspirar e fascinar o público e os estudiosos da arte. Velázquez não apenas capturou um momento da vida na corte, mas também fez uma declaração sobre a arte e o papel do artista, tornando As Meninas uma obra rica em interpretações e admirações contínuas.

 

Referências:

The Art Book – Adam Butler, Claire Van Cleave e  Susan Stirling; 1996, Phaidon Press Limited, Londres, Reino Unido

Great Paintings: The World's Masterpieces Explored and Explained -  2011, DK Publishing

museodelprado.es

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