“A Recuperação da Bahia de Todos os Santos” (1635), Juan Bautista Maíno

Por Sidney Falcão

Na primavera de 1625, os muros da cidade de Salvador, na Baía de Todos os Santos, tremiam sob o estrondo dos canhões e o barulho de um cerco feroz. Durante meses, as forças holandesas ocuparam esta cidade-chave do império português, desafiando o domínio ibérico nas Américas. De navios ancorados na baía, soldados portugueses e espanhóis, unidos pela União Ibérica, observavam ansiosamente as fortificações inimigas, cientes de que recuperar Salvador era crucial para manter o controle sobre o Atlântico Sul. Nesse contexto de tensão e épico, o pintor espanhol Juan Bautista Maíno (1581-1649) encontrou inspiração para criar uma das obras mais impressionantes da arte barroca: A Recuperação da Baía de Todos os Santos. 

A pintura, encomendada para comemorar a vitória ibérica, combina narrativa histórica com uma teatralidade típica do barroco. Para entender seu significado, é necessário nos situarmos no contexto histórico do cerco. Em maio de 1624, uma frota da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais tomou Salvador, a primeira capital do Brasil, de surpresa. Os holandeses, interessados em controlar o comércio de açúcar e enfraquecer seus rivais ibéricos, estabeleceram um governo provisório na cidade. Entretanto, essa ocupação provocou uma rápida resposta das coroas espanhola e portuguesa. Em março de 1625, uma poderosa armada, conhecida como Jornada do Brasil, partiu para libertar Salvador, culminando em uma reconquista vitoriosa em maio daquele ano. 

Nascido em Pastrana, Espanha, Juan Bautista Maíno foi um pintor profundamente influenciado por sua estadia na Itália, onde absorveu as lições do caravaggismo e do classicismo. Embora não estivesse presente no cerco, Maíno foi escolhido para imortalizar este episódio devido à sua reputação como um dos artistas mais talentosos de sua época. A obra provavelmente foi criada em Madri, numa época em que a arte barroca servia como ferramenta de propaganda para exaltar os triunfos da monarquia espanhola. 

Ataque holandês a Salvador, em 1624. Ilustração do século XVII
feita por autor anônimo.

Em A Recuperação da Baía de Todos os Santos, Maíno combina uma representação realista do evento histórico com elementos alegóricos e simbólicos. A composição é dividida em dois planos principais. No plano inferior, os soldados e os barcos representam a ação militar, enquanto no plano superior, as figuras celestes aludem à intervenção divina no triunfo ibérico. Essa abordagem não apenas celebra a vitória, mas também reforça a ideia de que a monarquia foi apoiada pelo desígnio de Deus. 

Um aspecto notável da pintura é sua atenção aos detalhes. Maíno retrata meticulosamente os uniformes dos soldados, as bandeiras balançando ao vento e os navios navegando pela baía. Essas representações não apenas documentam o evento, mas também transportam o espectador para o centro da ação. O uso do claro-escuro, uma influência óbvia de Caravaggio (1571-1610), confere à obra um drama que enfatiza a tensão e o heroísmo do momento. 

Além da dimensão histórica, a obra de Maíno tem uma forte carga simbólica. As figuras celestes que dominam a parte superior da composição representam vitória e proteção divina. No centro, um anjo segura uma cruz e um ramo de palmeira, símbolos de martírio e redenção. Essa integração do terreno e do divino é característica da arte barroca, que buscava comover e persuadir o observador por meio da emoção e da espiritualidade. 

A escolha de Salvador como tema da obra também reflete a importância geopolítica do Brasil no século XVII. Para a Monarquia Espanhola, a recuperação desta cidade não foi apenas um triunfo militar, mas também uma mensagem clara de seu poder e determinação em defender seus territórios ultramarinos. Ao encomendar esta pintura, as autoridades buscaram perpetuar a memória deste evento como um marco na história imperial. 

Imagem da cidade de Salvador atualmente. 

A influência de Maíno na arte barroca é significativa. Embora sua produção artística tenha sido relativamente limitada, obras como A Recuperação da Baía de Todos os Santos consolidaram sua reputação como um dos grandes mestres do barroco espanhol. Sua capacidade de combinar realismo e simbolismo, bem como sua maestria no claro-escuro, influenciaram gerações posteriores de artistas. Além disso, a pintura se destaca como um dos primeiros exemplos do uso da arte como ferramenta de propaganda política e religiosa. 

A narrativa visual que Maíno constrói nesta obra também nos convida a refletir sobre como a arte barroca interpretou e representou os grandes acontecimentos históricos de sua época. Ao dramatizar a ação e enfatizar a intervenção divina, o Barroco buscava não apenas informar, mas também inspirar devoção e orgulho patriótico em seus espectadores. Neste sentido, A Recuperação da Baía de Todos os Santos transcende a sua função de registo histórico para se tornar em um poderoso instrumento de persuasão e celebração. 

Concluindo, é importante destacar como o cerco de Salvador e sua representação por Maíno ilustram a complexa interação entre história, política e arte no século XVII. Este episódio não só reafirmou a hegemonia ibérica no Atlântico Sul, como também inspirou uma obra-prima que continua a fascinar historiadores e amantes da arte. Em A Recuperação da Baía de Todos os Santos, Juan Bautista Maíno conseguiu capturar a essência de seu tempo, transformando um evento histórico em uma narrativa visual que celebra a coragem, a fé e o poder de uma nação.

 

Ficha técnica 

Título: A Recuperação da Baía de Todos os Santos

Artista: Juan Bautista Maino

Ano: 1635

Técnica: Óleo sobre tela

Dimensões: 309 cm x 381 cm

Localização: Museu do Prado, Madrid, Espanha 

 

Referências:

museodelprado.es

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