Criança Morta (1944), Cândido Portinari
Por Sidney Falcão
A arte de Candido Portinari nunca foi apenas pintura: era um manifesto visual, um chamado à consciência. Em sua tela Criança Morta, o artista atinge um dos pontos mais altos de seu compromisso social e estético, uma obra que, mais do que retratar, denuncia. Parte da série Retirantes, esse quadro não apenas exibe a miséria do sertanejo nordestino; ele grita a tragédia de um país que condena parte de seu povo à exclusão e ao esquecimento.
O Brasil de Portinari era um Brasil rachado: de um lado, o progresso e a urbanização acelerada; do outro, uma massa de trabalhadores rurais abandonados à sua própria sorte, marcados pela seca e pela fome. Criança Morta não é apenas uma imagem dessa disparidade; é um documento visual da violência silenciosa imposta a essas populações.
Influências e Compromisso
Portinari não pintava de um lugar neutro. Filho de imigrantes italianos, cresceu em Brodowski, interior de São Paulo, e desde cedo conviveu com a realidade dos trabalhadores do campo. Seu olhar, porém, não era ingênuo. Ele compreendia o sofrimento daquelas famílias, mas também sabia que sua representação poderia se transformar em um símbolo poderoso.
A influência de Guernica (1937), de Pablo Picasso, é visível. Quando viu a obra do espanhol em Nova York, Portinari reconheceu ali um caminho para expressar a dor coletiva sem abrir mão da força plástica. Em Criança Morta, ele adota um esquema cromático restrito e figuras distorcidas, aumentando a intensidade emocional da cena. A escolha de pintar retirantes em grandes dimensões, como se fossem personagens históricos, revela sua intenção: dar visibilidade a quem sempre foi marginalizado.
Mas há também uma questão incômoda: até que ponto essa representação dignifica ou cristaliza um estereótipo? Os retirantes de Portinari são figuras arquetípicas, sem traços individuais, como se a miséria fosse sua única identidade. Ele os humaniza pela dor, mas ao mesmo tempo os aprisiona em um papel definido pela própria desgraça.

Guernica, de Pablo Picasso: referência para Cândido Portinari conceber Criança Morta.
Criança Morta é uma pintura que pesa sobre o espectador. A escolha cromática é feita de ocres, cinzas e violetas sujos, como se a própria cor da terra seca tivesse contaminado a pele dos personagens. Os traços são duros, as formas fragmentadas, os contornos marcados, e tudo parece aprisionado em um torpor inescapável.
O centro da cena é brutal: uma mãe segura o corpo do filho morto. O pequeno cadáver já exibe sinais de decomposição, e a expressão da mulher é de uma dor que vai além do choro, algo silencioso, paralisado. A menina ao lado, que segura a cabeça da criança, amplia a sensação de luto.
Outros personagens reforçam essa atmosfera sufocante. Uma mulher à esquerda se apoia na mãe, como se buscasse um conforto que não existe. Outra, à direita, cobre o rosto, escondendo-se do horror. O menino ao lado, com cabeça desproporcional, observa a cena com olhos vazios. O tempo parece suspenso, como se essa tragédia não fosse um evento isolado, mas um ciclo interminável.
Portinari recorre a um recurso visual impactante: as chamadas "lágrimas de pedra", onde os olhos dos personagens parecem solidificados pelo pranto. Não há histeria na cena, não há movimentação exagerada. Há apenas o luto e a resignação, como se a dor já fizesse parte inevitável da vida dessas pessoas.
Uma dor atual
Mesmo passadas décadas, Criança Morta continua a incomodar e provocar reflexões. Se nos anos 1940 a fome e a seca eram a condenação de muitos brasileiros, a desigualdade social ainda persiste, e a miséria continua a fazer vítimas. A obra de Portinari não é um retrato congelado no tempo, mas um espelho de um país que insiste em repetir suas tragédias.
O que faz essa pintura ser tão impactante é sua capacidade de transformar a dor em símbolo. Os personagens retratados não são apenas retirantes nordestinos; são todos aqueles que são ignorados, esquecidos, deixados à margem. Ao dar a eles dimensão monumental, Portinari os resgata da invisibilidade e os coloca diante de nós como um lembrete incômodo: o Brasil que preferimos não ver está bem diante de nossos olhos.
Candido Portinari, ao pintar Criança
Morta, fez mais do que um quadro: ergueu um memorial à dor e à dignidade
dos excluídos. Seu grito silencioso continua ecoando, desafiando qualquer um
que tente desviar o olhar.
Ficha técnica
Título: Criança Morta
Artista: Cândido Portinari
Ano: 1944
Técnica: óleo sobre tela
Dimensões: 182 x 190
Localização: Museu da Arte de São
Paulo (MASP), São Paulo, Brasil
Referências:
artsandculture.google.com
masp.org.br

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