A Adoração dos Pastores (1644-1645), Georges de La Tour
Por Sidney Falcão
O panorama da pintura barroca francesa do século XVII guarda, em seu recanto mais introspectivo, o gênio enigmático de Georges de La Tour (Vic-sur-Seille, 1593 - Lunéville, 1652). Sua obra-prima, A Adoração dos Pastores (óleo sobre tela, c. 1644-1645), conservada hoje no Museu do Louvre em Paris, transcende a mera representação bíblica para se firmar como um tratado visual sobre a luz, o mistério e a humildade humana.
La Tour, um pintor cuja obra mergulhou no esquecimento após sua morte, ressurgindo e sendo reavaliada apenas no século XX , é o mestre inconteste do notturno, a cena noturna iluminada por uma fonte artificial. Nesta Natividade, ele não apenas emprega o recurso da iluminação controlada, mas o eleva a um patamar de profunda significação teológica e estética, estabelecendo o elemento mais famoso e central de seu trabalho: a maestria da luz, ou tenebrismo.
A Maestria da Luz: Do
Tenebrismo à Teologia do Oculto
O elemento que imediatamente captura e sustenta o olhar é a fonte de iluminação. A cena não é inundada pela glória de uma luz celestial, mas sim banhada por um brilho íntimo, quente e discreto, emanado de uma única fonte terrena: uma vela. Este artifício, que se inspira no chiaroscuro de Caravaggio (1571-1610), é manipulado por La Tour de maneira singular.
A luz projeta-se sobre as figuras principais, contrastando-as dramaticamente com a escuridão absoluta do fundo. Tal contraste estabelece uma atmosfera de silêncio solene e veneração concentrada, transformando a cena em um momento de profunda introspecção e mistério. Aqui, o jogo de luz e sombra não é apenas um recurso técnico para dar volume, mas uma metonímia da própria fé. A vela torna-se, metaforicamente, o Menino Jesus, a "Luz do Mundo".
Contudo, o toque de gênio reside na intervenção humana na gestão dessa luz: a vela é oculta pela mão protetora de São José, que a carrega. Este gesto sutil, de esconder a chama – que é o símbolo da pessoa de Cristo – relaciona-se diretamente com o conceito do "Deus oculto" (Deus absconditus), amplamente difundido na espiritualidade de Bérulle e nos escritos de Isidoro Isolanus.
São José, o pai adotivo, é aquele que, na pintura de La Tour, "oculta a divindade do Filho durante a sua infância, antes de ser revelada". Ele "tocou com as mãos a Palavra oculta de Deus". A fonte luminosa, a Palavra-Luz, remonta, em última análise, à Noite Santa de Correggio (1522–1527) e permaneceu em voga no século XVII em conexão com a imagem agostiniana desenvolvida por Bérulle. La Tour, portanto, utiliza o tenebrismo não para o drama físico, mas para o drama espiritual de uma revelação que ainda precisa ser contida e protegida.
Intimidade, Naturalismo e
Composição Monumental
A Adoração dos Pastores de La Tour é notável por sua abordagem de humildade e realismo, em contraste com o esplendor teatral de muitas obras barrocas contemporâneas. A cena é despojada de pompa habitual, sem anjos voando ou figuras mitológicas. É uma representação de pessoas comuns – a Virgem, José e os pastores – em trajes simples, testemunhando um milagre.
As figuras estão agrupadas de forma compacta e próxima, eliminando a noção de um grande cenário arquitetônico e reforçando a intimidade da devoção concentrada. Os pastores estão vestidos com roupas contemporâneas ao pintor , sublinhando o naturalismo da cena. A serenidade e contemplação são as emoções humanas predominantes.
Apesar da intimidade, a composição é construída com notável cuidado, conferindo-lhe um caráter de monumentalidade que, segundo Pierre Rosenberg e Jacques Thuillier, já antecipa as telas dos últimos anos do artista.
· O Eixo Vertical: O grupo central, composto pelo pastor e a pastora trazendo oferendas (simétricos) e o pastor sorridente segurando uma flauta, marca e estabiliza o eixo vertical da composição.
· As Diagonais: La Tour estabeleceu um movimento diagonal em profundidade, partindo da figura de São José em primeiro plano à direita e terminando com a Virgem em oração à esquerda. O Menino, envolto em faixas e visto de um ângulo, forma uma diagonal oposta à anterior. Este entrelaçamento de diagonais, juntamente com o cromatismo de tons frios (o azul do manto da Virgem) e o lugar ocupado pelos vermelhos , atrai e direciona o olhar do espectador através da cena.
A centralidade de São José é ainda mais evidente no formato original da obra, conhecido por uma cópia em Albi, onde se podiam distinguir suas ferramentas de carpinteiro exibidas com destaque logo abaixo do Menino adormecido. Esta evidência reforça a interpretação da obra no contexto de uma devoção josefina, ecoando obras como o São José Carpinteiro no Louvre.
Legado e Redescoberta no Louvre
Datada do segundo trimestre do século XVII, por volta de 1644, A Adoração dos Pastores tem sido frequentemente identificada com a Natividade de Nosso Senhor "à noite", oferecida pela cidade de Lunéville ao Marechal de La Ferté naquele ano. Sua coloração quase monocromática e as formas geométricas a aproximam das Lágrimas de São Pedro de Cleveland, obra assinada e datada de 1645.
A obra de La Tour, conhecida por suas cenas noturnas, caiu no esquecimento após sua morte, mas sua história de redescoberta é fascinante e crucial para a história da arte moderna. A pintura reapareceu por volta de 1924 em Amesterdão, inicialmente atribuída a Gerrit Van Honthorst. Foi o historiador de arte Hermann Voss quem a devolveu a Georges de La Tour em 1926. Adquirida pelo Louvre nesse mesmo ano , ela se tornou a primeira pintura de La Tour a integrar a coleção do museu.
A aquisição ocorreu anos antes da exposição Pintores da Realidade na Orangerie des Tuileries em 1970, que projetou a arte de La Tour para um público mais amplo. Este ressurgimento confere ao artista um fascínio adicional, como um mestre que "roubou" a luz de Caravaggio e a utilizou de maneira única, dando um toque de profunda espiritualidade a temas bíblicos.
Em suma, A Adoração dos
Pastores é uma meditação em óleo sobre tela. É a fusão da composição
geométrica e monumental com um profundo humanismo. La Tour não se limitou a
representar o nascimento de Cristo; ele nos convidou a uma experiência íntima e
silenciosa, onde a luz de uma simples vela, habilmente oculta pela mão de São
José, se torna o portal para a compreensão do mistério divino: o próprio
Menino, a Palavra-Luz, ainda resguardada em sua humildade terrena. Uma obra que
permanece, até hoje, um testemunho eloquente da capacidade da arte de
transformar a escuridão em revelação.
Ficha técnica
Título: A Adoração dos Pastores
Artista: Georges de La Tour
Ano: c. 1644-1645
Técnica: óleo sobre tela
Dimensões: 107 cm × 137 cm

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