“O Lavrador de Café” (1934), Cândido Portinari


Por Sidney Falcão

Entre 1870 e 1930, o cultivo do café funcionou como um verdadeiro motor econômico do Brasil. Mais do que isso, foi o alicerce de uma nação em transformação. Durante esse período, o café não apenas dominou as exportações, mas também moldou a sociedade e a cultura brasileiras, especialmente na região Sudeste, onde as vastas plantações se tornaram símbolos de progresso e prosperidade. No entanto, esse crescimento vertiginoso teve um custo elevado, tanto com a mão de obra negra escravizada quanto, posteriormente, com os imigrantes europeus assalariados. Fosse com os escravizados ou com os imigrantes, o trabalho era árduo sob um sol escaldante. 

É nesse cenário de contraste entre riqueza e miséria que surge a figura de Cândido Portinari (1903-1962), um dos maiores expoentes do modernismo brasileiro. Filho de imigrantes italianos que trabalhavam nas plantações de café, no estado de São Paulo, Portinari conhecia intimamente as dificuldades e a dureza da vida no campo. Sua arte é profundamente enraizada nessa realidade, e ele buscou, através de suas obras, retratar a verdadeira essência do Brasil, rompendo com as convenções artísticas europeias e criando algo genuinamente nacional. 

Uma de suas criações mais emblemáticas é O Lavrador de Café, uma pintura que vai além do mero retrato para se tornar um manifesto visual da luta e da resiliência dos trabalhadores rurais brasileiros. Guardada no acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP), esta obra é um testemunho vibrante da complexa interação entre a opulência dos cafezais e a dura realidade dos que os cultivavam. 

Na tela, Portinari nos apresenta um lavrador negro, de porte robusto e membros desproporcionais, vestido com uma camisa lilás e calças arregaçadas, descalço. A figura do lavrador domina a composição, ocupando quase toda a altura da tela. Sua postura é imponente, apoiado numa enxada, símbolo do seu labor diário, capturando um momento de pausa em meio ao trabalho incessante. No entanto, seu semblante preocupado e triste revela a frustração e o cansaço resultantes do trabalho árduo. A luz que incide sobre seu rosto não só destaca sua força física, mas também sua humanidade e a consciência das injustiças que enfrenta diariamente.

Cândido Portinari.


Portinari utiliza a desproporção dos membros do lavrador não apenas como um recurso estilístico, mas como um símbolo da força física necessária para o trabalho braçal. Este elemento estilístico, com raízes no expressionismo e explorado por artistas como Tarsila do Amaral (1886-1973), enfatiza que, embora esses trabalhadores não possuam a terra que cultivam, são eles os verdadeiros responsáveis por sua fertilidade e transformação. 

Ao fundo, uma vasta plantação de café se estende até o horizonte, interrompida à direita por uma árvore derrubada e à esquerda por um trem de carga que corta a paisagem em diagonal. O céu volumoso, com nuvens brancas contrastando com o azul, adiciona uma dimensão dramática à cena. A árvore decepada ao lado direito do lavrador é um símbolo poderoso do desmatamento e da exploração ambiental, contrastando com a plantação de café ao fundo. Este detalhe sugere a destruição das matas nativas em prol do crescimento econômico das elites rurais. Já o trem de carga ao fundo simboliza a modernização e a prosperidade trazidas pela produção cafeeira. No entanto, essa prosperidade estava longe da realidade dos trabalhadores, que viviam em condições de quase escravidão, sem usufruir dos frutos de seu labor. 

O Lavrador de Café transcende seu tempo, oferecendo uma crítica contundente às desigualdades sociais e econômicas do Brasil. Portinari, com seu olhar sensível e sua habilidade artística, dignifica a figura do trabalhador rural, expondo suas lutas e sua dignidade. A pintura não é apenas um documento histórico, mas um lembrete permanente da necessidade de justiça e igualdade social. Através dessa obra, Portinari contribuiu de maneira indelével para a compreensão da identidade nacional brasileira e das complexas relações sociais e econômicas que moldaram o país. 

Mais do que uma obra de arte importante, O Lavrador de Café é um espelho da alma brasileira, refletindo tanto sua grandeza quanto suas contradições. É um convite à reflexão sobre o passado e uma provocação para o futuro, lembrando-nos de que a verdadeira riqueza de uma nação está em seu povo e na dignidade com que ele é tratado.

 

Ficha técnica

Título: O Lavrador de Café

Artista: Cândido Portinari

Ano: 1934

Técnica: óleo sobre tela

Dimensões: 100 cm × 81 cm

Localização: MASP (Museu de Arte de São Paulo), São Paulo, Brasil.

 

Referências:

culturagenial.com

masp.org.br

portinari.org.br

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